segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Chegou em casa às três horas da manhã, impressionada com a cena que vira no bar: uma moto atingida por um carro, cujo motorista fugiu, sem dar assistência ao motoboy. A ambulância demorou um tanto quanto para chegar, e quando o fez, para o sofrimento do acidentado, demorou horas e horas no local após o corpo do motoboy ter sido colocado em seu interior (estariam leiloando os órgãos do motoboy?).
Tensa, não conseguiu dormir logo, e ouviu barulhos estranhos, de vozes: um tumulto! Ouviu tiros, objetos sendo quebrados, e logo percebeu o que estava acontecendo: um grupo de jovens havia invadido a clínica de fiosioterapia que ficava em frente ao seu prédio, e estavam fazendo uma baderna lá dentro. Depois ouviu gritos deseperados de mulher, simultâneos a urros e gargalhadas.
Acordou no dia seguinte, e lembrou-se de tal situação como se tudo fosse um sonho ou alucinações de uma mente insone...
Foi à banca mais próxima comprar o seu jornal, como fazia todo domingo, e qual não foi o seu espanto quando constatou notícia que confirmava seu "sonho", dizendo que um grupo de jovens realmente invadira a clínica próxima à sua casa e estrupara e decapitara uma mulher lá dentro. O caso estava sendo investigado e já haviam alguns suspeitos.
Dias depois ficou sabendo que a perícia médica constatou que a mulher havia sido estuprada antes e após ser decapitada...
Contra a sua vontade, Virgínia imaginou um homem barbudo e babando uma saliva pegajosa em cima de um corpo sem cabeça, acariciando seios nos quais não mais corriam sangue...

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Pose de morte

Não gostava dessa foto da avó. O semblante era triste, anúncio de morte. A consciência do fim estava ali, e talvez só ali. Nos dias finais que lhe restaram viveu como se não existisse fim: alegre, jovial, quase inconsequente. Oitenta e seis anos. Mas naquela foto, como num capricho, a lucidez esticara a linha até o limite. Era a finitude no semblante, a morte empedrada. Para nunca mais.Ninguém fez jamais tal pose de morte.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

fotografia

choveu,
e eu não estava em casa.
a água molhou tudo.

aquela foto bonita da nossa viagem à bahia.
ficou boa assim, uma bahia desfocada, manchada, chorada.
talvez tenha saudades nossas, talvez não lembre nossos rostos.

eu agora entendo que precisamos nos ver outra vez,
mas tem que ser na bahia.
e dessa vez não vou tirar foto alguma

que minha memória temporal nenhum mancha,

só o tempo...
Aquela foto em preto e branco, já amarelecida pelo tempo, a intrigava. Olhos profundos e violentamente tristes que a atraíam como se ela tivesse vertigem e estivesse diante de um poço. Rendas brancas em torno do pescoço que se erguia do tronco como pronto a alçar vôo. Quem teria sido aquela mulher com ar de mistério? Achou a foto no porão da casa de sua avó... uma parente distante? Quem quer que fosse, condensou imensa melancolia naquele pedaço de papel, melancolia que irradiava pelos olhos como dois faróis sofridos...

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Lago

Você é todo lago.
Todo olhos transparentes,
corpo morno,
balanço suave...

Lago onde me largo, estreito corpo em suas águas sem fim.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

O lago

As margens do lago cabiam no horizonte descampado da pequena aldeia. Para contorná-lo era fácil. Mas poucos se atreviam a entrar. Primeiro, porque era fundo logo no primeiro passo. Depois, tinha algo estranho para quem, com o seu barquinho, tentava atravessá-lo. Algo expulsava sempre os homens. Uma correnteza? Ninguém sabia o que era. Mas, de qualquer início de margem, o intento era frustrado. Os homens remavam, até conseguiam algum caminho, mas a força era tanta que desistiam. Ninguém sabia nada. O fato é que quanto mais se avançava - ninguém conseguia avançar um metro com exatidão - mais a pequena colônia de peixes aumentava. O interesse dos raros pescadores era ultrapassar um pouco esse limite. O impulso era a fome, o sustento das famílias.

Nesses anos todos em que estive sempre a olhar os intentos melancólicos dos pescadores - o meu olhar era também de melancolia - só vi um pescador, que todo dia, logo ao amanhecer, pegava o seu barquinho frouxo, nunca desistir. Ele saia, depois de tanto remar já no fim da noite, com aspecto de glória. Conta a aldeia - eu nunca conseguia olhar o fim de tanto esforço inútil - que os peixes eram sempre os mesmo. Mesmo tamanho, mesmo gosto, mesma espinha. Mas o homem sempre os via maior, e os comia com mais fome e com mais prazer. Os filhos e a mulher mantinham, depois de cada refeição, o aspecto magro. O homem parecia que engordava, se fortalecia.


Não aguentava ver mais o lago, a fome, os pescadores inúteis. Mudei de aldeia. Mas o lago parece não ter me abandonado. Vivo do comércio dos peixes. E a fome e as pessoas que compram esses peixes parecem se assemelhar ainda a tudo da minha aldeia.


Acaba de chegar para os meus olhos um peixe enorme. Tão enorme que ninguém se atreveu a comê-lo. Também não quis vendê-lo. Sabia que tinha sido o homem a pescá-l0. Corri para a aldeia, para o lago. Para a minha surpresa todos os pequenos barcos estavam no centro do lago. Todos os pescadores com os seus grandes peixes. Somente um pescador estava na borda, o Homem. Cansado e velho ele estava deitado dentro de seu barco e carrega junto ao peito um outro peixe. A família e o povoado, famintos, tentaram a todo custo tirar o peixe do colo do homem para comer. E o momento foi fatal. O homem nunca tinha usado tanta força! Morreu!

A aldeia comia tranquila o peixe que sobrava.

Nenhum pescador conseguiu jamais voltar do centro do lago. Ficamos sem saber se tinham medo da fome da aldeia ou se não voltaram porque o lago agora impedia todos de sair de seu centro. De longe, víamos algumas remadas. Mas o que se passava? Morreram todos.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Superfície vibrilínea horizontal da massa aquosa plácida abrigo de seres.